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terça-feira, 13 de abril de 2010

CRÔNICAS FORENSES
Assim Caminha a Humanidade: CASO NARDONI

Após quarenta e três anos de advocacia criminal, atuando tanto na defesa quanto na assistência de acusação, penso que o julgamento do casal Nardoni, realizado no final do mês passado e que abalou a opinião pública brasileira, não foi imparcial nem justo.
O excesso de publicidade em torno do caso desde o início, com ênfase nas provas técnicas coligidas pela polícia, os sentimentos arquetípicos envolvidos - morte de uma criança, pai e madrasta suspeitos e, logo depois, acusados - levou a um prejulgamento do processo.
Todos, ou quase todos, operadores do direito ou leigos - mesmo sem conhecer os autos - já tinham seu veredito: culpados do hediondo crime! E, por isso, odiados...
A revolta da sociedade, cansada da violência, da corrupção e da impunidade, a todos contaminou, exigindo-se uma punição exemplar.
Nos cinco dias que durou o júri, a tensão e a hostilidade atingiram níveis absurdos. Os familiares dos acusados eram vaiados quando adentravam ao Fórum, e seu advogado, além das vaias, quase foi agredido. Mesmo após o anúncio da sentença, comemorada com gritos e até fogos de artifícios, populares tentaram alcançar os camburões que conduziam os condenados ao seu destino. Outros, mais descontrolados, quiseram invadir o Fórum para agredir os familiares dos réus, tendo a Polícia Militar sido obrigada a lançar gás de pimenta para dissuadí-los...
E eu pergunto: nesse "clima de guerra", com a pressão da imprensa e da sociedade em patamar certamente inédito na recente história forense, havia condições para um julgamento justo e imparcial, como exige a lei, a moral, a garantia constitucional da presunção de inocência e o respeito à dignidade humana dos acusados? Acho que não.
Se os jurados optassem pela absolvição, como se garantiria a saída deles do Tribunal? Quais as represálias que sofreriam naquele momento e depois, como os familiares dos acusados que tiveram suas casas pichadas no dia seguinte?
Em outros países, como nos Estados Unidos, casos como este que mexem com o recôndito da alma, com os nossos sentimentos mais profundos e despertam paixões incontroláveis - correm em segredo de justiça, justamente para preservar e garantir a justeza e a imparcialidade do processo e, principalmente, do julgamento.
Entre nós, o Código de Processo Penal, em seu art. 20, caput, autoriza que a autoridade policial decrete o sigilo do inquérito quando "necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade". Na fase do processo criminal, o art. 155, caput, inciso I, do Código do Processo Civil, aplicável à ação penal por força da analogia permitida pelo art. 3º do Código de Processo Penal, prevê correrem "em segredo de justiça os processos... em que o exigir o interesse público".
Ora, manifesto é o interesse público e da sociedade em se garantir processos e julgamentos justos e imparciais.
No caso Nardoni, o sigilo do inquérito foi inicialmente decretado, mas, logo depois, desrespeitado. E, durante o transcorrer do processo, dele não mais se cogitou.
A inexistência de um processo justo e imparcial é o caminho mais fácil para o que, a meu ver, é a maior tragédia do processo penal: a possibilidade de um erro judiciário... Que eu, lamentavelmente, acredito ter ocorrido neste que é chamado "o julgamento da década".
Com efeito, como, senão sob forte emoção e pressão populares, aceitar a tese da acusação de que um pai - que não se provou nem se alegou ser louco - jogou pela janela uma filha viva? E isso para ocultar uma suposta tentativa de homicídio por parte da madrasta? Ou seja, consumar um homicídio para encobrir uma tentativa? Praticar o mais para esconder o menos?
Há uma máxima forense que diz que "o que não está nos autos não está no mundo". Quer dizer: as partes e o juiz só podem se basear nas provas que constam do processo. A realidade mostra, todavia, que, muitas vezes, acontece justamente o contrário: nem tudo que está no mundo está nos autos...
Uma hipótese muito suspeita não foi, no caso, investigada.
Refiro-me a um policial militar que, trabalhando em uma guarnição da região, foi a primeira pessoa estranha que, sem ter sido chamada, foi vista no prédio instantes após a queda da menina. Sua presença no local está documentada pela televisão. Meses depois, o referido policial militar foi alvo de uma investigação que apurava a prática de pedofilia por membros da corporação. Com autorização da Justiça Militar, interceptado seu telefone, descobriu-se que ele tentava conseguir um encontro com uma menina de cinco anos, a mesma idade de Isabella. Decretada sua prisão provisória, oficiais foram até seu apartamento para cumprí-la. O policial militar pediu para ir ao banheiro antes de acompanhá-los. Aí, entrou no banheiro, trancou-se e suicidou-se com um tiro... O fato foi noticiado pela imprensa.
Ao que sei, esse caso de pedofilia não foi, entretanto, levado aos autos, não tendo sido requisitada cópia de toda a investigação policial-militar realizada. O que talvez ainda possa ser feito na apelação, com a conversão do julgamento em diligência, ou em uma futura revisão criminal. Isso, se não for aceito o protesto por novo júri, que a meu ver deve aplicar-se a esse caso, por ser sua abolição posterior aos fatos e envolver direito material concernente à pena. É a ultratividade da lei penal ou mista (penal e processual penal) mais benéfica.
A grande maioria das pessoas, leigas ou não, considerou, contudo, as provas técnicas suficientes, o julgamento imparcial e a condenação justa. Diminuiu-se o sentimento de impunidade, aplacaram-se as consciências e silenciaram-se os sentimentos inconscientes. O casal voltou aos presídios em que estavam para cumprir suas penas, e eles e o caso tendem a, progressivamente, ser esquecidos.
Até que surja um novo episódio criminal a despertar as mesmas emoções e paixões coletivas, e o prejulgamento da mídia e sociedade, comprometendo o sagrado direito de todo acusado a um processo e a um julgamento justos e imparciais, afastando o perigo, sempre presente, de um erro judiciário.
E, entre risos e lágrimas, acertos e erros, mas sempre sem perder a esperança de que a justiça dos homens um dia se torne menos falha, assim caminha a humanidade...



Autor:
Roberto Delmanto
Advogado criminalista, co-autor do Código Penal Comentado e das Leis Penais Especiais Comentadas, e autor dos livros de crônicas Causos Criminais e Momentos de Paraíso - memórias de um criminalista, todos pela Editora Renovar.
Jornal Carta Forense, quinta-feira, 1 de abril de 2010

2 comentários:

  1. FLAVIO RAMOS - advogado - 8/4/2010 22:33:24
    A colocação do Delegado de Polícia é um pouco equivocaca a despeito do "se não tenho nada com isso, é melhor não me meter, senão sobra para mim", pois o que o ilustre autor coloca é uma possilibidade que nao fora devidamente investigado. Para tanto, a Carta Política de 1988 consagra um dos princípios basilares que é o que faz a diferença entre o processo inquisitório do inquérito policial do processo acusatório, que no moderno direito penal e processo penal é de singular importância. A despeito do que o ilustre escritor coloca sobre o resultado antecipado do julgamento, é importante ressaltar que nao só estava definido com a prisão dos indiciados como também ficou claros que o Estado de Direito sofre uma interferência violenta do "Poder da Imprensa", que em melhor juízo adentra, nesse caso específico, na idade media e assim volta-se ao processo inquisitório e diante disso é autorizador o que MACHEL FOUCOULT em seu livro VIGIAR E PUNIR nos ensina que para para completar tal violência processual-penal só faltaria o " SUPLICIO" dos acusados. Portanto, nos operadores desta ciência ímpar "JURÍDICA" e em melhor definiçao de Kelsen como a melhor ciência, devemos ter consciência do nosso papel na sociedade e nao permitir que se retorne à idade média com os seus violentos julgados, como os horrores de um processo inquisitório. É nesse sentido, que se deve elevar ainda mais o PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E A DA AMPLA DEFESA. Por conseguinte, o ilustre autor bem colocar a nao observação da possibilidade do policial militar ter sido investigado, com isso "SUPLÍCIO DOS NARDONI" nao estariam tao completos, implicitamente. Flavio Ramos - Advogado

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  2. Cristiano Santos - Delegado de Polícia - 8/4/2010 11:03:12
    Eu, como policial, tenho que tomar mais cuidado, porque vai que eu preste socorro a alguém fora de meu horário de serviço e passe a receber insinuações de que fui o autor do "homicídio da década". Respeito muito o autor, tenho várias edições de seu Código Comentado, mas as alegações de que o crime teria sido praticado pelo policial militar suicida, só pelo fato de estar naquele local, reforçam ainda mais o sentimento de que "se não tenho nada com isso, é melhor não me meter, senão sobra para mim". Infelizmente, ainda não fui convencido disto, e continuarei prestando meus serviços a desconhecidos, e em qualquer hora do meu dia, como prometi em meu juramento ao tomar posse como delegado de polícia. Ainda que, ao final, tudo seja culpa da Polícia mesmo, como se costuma dizer...

    A imparcialidade consiste em não favorecer um em detrimento do outro. Quando se afirma que um magistrado ou um júri não foi imparcial, quer se afirmar que houve favorecimento de uma parte. Esse tipo de afirmação põe em cheque a credibilidade do magistrado, da justiça e do juri. O direito a informação é um direito fundamental que não pode ser negado ao cidadão. É a forma que a sociedade tem de fiscalizar as atividades do judiciário, especialmente se o juiz ou o júri agiram com imparcialidade. A maioria das pessoas, incluindo quem escreve essas linhas, não se debruçaram no processo, analizando-o com perspicácia. Assim, é temerário fazer algum julgamento sobre a atuação do magistrado ou do juri, afirmando que não houve imparcialidade no julgamento. Imparcialidade é diferente de neutralidade. Conforme visto a imparcialidade é uma condição de legitimidade no julgamento de qualquer caso, pois sem ela não haverá justiça. Quanto a neutralidade essa é impossível de existir, não existe este ser humano livre de pre-juízos, pois todos nós somos produtos de nosso meio. Nossas crenças, nossa moral, os costumes, formam nossa pré-compreenção do caso concreto. Essa pré-compeenção é fundamental para dá início ao discurso, ao processo dialético que deve permear o processo. Todos esses ingredientes fazem parte do interprete-aplicador do direito. No direito não se busca a verdade, mas o justo político.
    JESAÍAS PINHEIRO DE OLIVEIRA - servidor público - 8/4/2010 10:33:36

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